Análise: Miles Davis no vale das sombras
Muitos artistas tocam por notas e alguns outros por
silêncio, mas um, Miles Davis, se comunicava pelo mistério. O vale das sombras
criado entre o som e a pausa era algo tão poderoso e assustador que não apenas
reforçava seu espírito para experimentos como Bitches Brew, de 1969, e On The
Corner, de 1972, o que seria o mais óbvio, como também tornava a beleza de seu
cool de poucas e longas notas em um calafrio da alma. Miles, 19 anos depois de
sua morte, é abordado mais uma vez em um projeto biográfico, e, mais uma vez,
de forma original.
O que se pode ver no documentário Birth of Cool, com quase duas horas de
duração conduzidas pelo diretor Stanley Nelson, disponível na Netflix, é um
entendimento do quanto a vida fora dos eixos influenciou a música idem de Miles
Davis. Os entrevistados são gente como os saxofonistas Wayne Shorter e Archie
Sheep, o pianista Herbie Hancock, o compositor e pianista Quincy Jones, o
guitarrista Mike Stern, além de amigos de infância, sobrinho, ex-mulheres. Mas
a estratégia biográfica de ótimo resultado foi inserir uma voz imitando a de
Miles, dizendo frases retiradas do livro Miles, a Autobiografia, assinada com
Quincy Troupe, em 1989, ou pensamentos que ele não necessariamente disse, mas
que, tudo leva a crer, poderia ter dito. Não há ficção, apenas criatividade.
E é ela, a voz, quem abre o documentário. “A música sempre foi uma maldição para
mim. Durmo e acordo precisando disso. Ela está sempre presente, e é a minha prioridade.
” Antes de se tornar essa maldição à qual se referia no fim da vida, a música
seria sua libertação e, antes disso, a própria salvação. De uma casa em guerra,
com a mãe arremessando garrafas na cabeça do pai e o pai acertando a boca da
mãe com socos, o menino Miles ganhou um trompete. Havia já uma confusão social
na casa de East St Louis, Illinois, anos 1920. Seu pai era um dentista bem
relacionado, criador de gado e porcos, um homem de posses. Quando percebeu
algum talento em seu garoto de 13 anos, trouxe da rua um trompete. A mãe queria
dar um violino, e os copos começaram a voar. Mas Miles seria fiel ao primeiro
presente.
Antes de ir para a Juilliard School entender o que ouvia nos bares da Rua 52 de
Nova York, Miles, aos 18 anos, fez parte da fenomenal orquestra de Billy
Eckstine, tocando ao lado de Charlie Parker e de Dizzy Gillespie. O futuro do
jazz estava sentado a seu lado, e se levantava para fazer solos estonteantes.
Miles entendeu logo o que deveria fazer. “Nada de dançar, sacolejar, essas
coisas. Ele queria ser com Stravinski”, diz Quincy Jones. Wayne Shorter se
lembra de quando estudaram juntos. Ao ouvir uma professora dizer que o blues
havia nascido do sofrimento do homem negro, Miles, certamente se lembrando da
alegria dos homens que faziam blues em St Louis, ergueu a mão e respondeu: “A
senhora é uma mentirosa. ”
A Segunda Guerra acaba e Miles segue para Paris, a terra sagrada dos jazzistas
negros cansados de entrarem pela porta dos fundos nos próprios restaurantes
onde iriam se apresentar. Paris foi a glória. O jazz era o som que a Europa
queria para seu triunfo, e lá estava ele, pela música e pelas mulheres. “Sempre
amei muito a música, não tive tempo para romances. Isso até conhecer Juliette Greco.
” Cantora e atriz francesa de beleza embriagante, Juliette viveu o melhor dos
Miles. “Foi em Paris que entendi que nem todos os brancos são iguais”, ele
escreve em sua autobiografia. “Alguns não são preconceituosos. ” Jean-Paul
Sartre, ao ver a luz que emanava do casal, quis saber. “Miles, por que você não
se casa com a Juliette? ” “Porque eu a amo”, ele respondeu, deixando o pensador
pensativo.
Miles Davis e as drogas que o destruíram
A voz de Miles, muito imitada entre os jazzistas por sua rouquidão, não era
daquela forma por acaso. Uma história pouco contada, que aparece no
documentário, lembra que Miles sentia um nódulo na laringe que passou a
incomodá-lo cada vez mais. Silenciosamente, foi aos médicos e se submeteu a uma
cirurgia para retirá-lo. Mas não obedeceu à recomendação de não falar por dez
dias e acabou herdando o timbre metálico para toda a vida. No primeiro show que
foi apresentar com a nova voz, a plateia só o ouviu por três palavras e começou
a rir ruidosamente. Miles parou de falar, olhou para o público e se retirou do
teatro.As drogas o destroíram, primeiro por diversão e, depois, por necessidade
química. Seus músicos sofriam quando ele chegava em ensaios com grupos novos,
como fez em uma viagem à Europa, e não dizia sequer bom dia. Apenas tocava, sem
informar o nome do tema ou sua tonalidade. Se alguém não viesse junto, estava
fora. Archie Sheep pediu certa vez para sentar-se a seu lado em um restaurante.
“Quem é você? ” “Archie Sheep” “Vá se fo… Quem disse que pode se sentar comigo?
” E as mulheres apanhavam. Esse era o pior dos Miles, aquele que também estaria
presente no misterioso vale das sombras de Miles Davis.Se Miles era o mistério, Nina Simone era o medo. Medo não só dos que se
aproximavam ou tocavam com ela, mas um pavor que havia em si sobretudo quando
estava diante de um mundo ao qual ela não conseguia pertencer. Nina era mentalmente
doente, e sofreria por isso até que a diagnosticassem com um sério transtorno
de bipolaridade, afastando pessoas importantes de sua vida, contratantes de
shows, músicos e empresários.