Fome de poder em ‘Jogos Vorazes’
“Lembre-se de quem é o
verdadeiro inimigo.” Esta é uma das frases mais marcantes da trilogia de
Jogos Vorazes, mencionada algumas vezes durante momentos importantes da
história que se tornou um fenômeno no mundo inteiro em 2008, quando o primeiro
livro da saga foi lançado nos EUA. Agora, 12 anos depois, a história ganha um
prólogo, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, e um novo protagonista,
Coriolanus Snow. Mas o personagem não é novidade para os leitores da saga.
Desta vez, o foco da história é o inimigo de
Katniss Everdeen, o presidente da distópica Panem e organizador dos jogos que
mudaram a vida dela para sempre. No novo livro, que se passa décadas antes dos
jogos de Katniss, o leitor é apresentado a um jovem Coriolanus, que faz de tudo
para manter as aparências da família após terem perdido toda a riqueza durante
a guerra civil que deu origem aos Jogos Vorazes. Tudo o que restou foi o status
dos Snow e alguns benefícios que o sobrenome ainda lhe proporcionava, como a
possibilidade de estudar na Academia da Capital.
Os estudos eram o passaporte de Coriolanus para
uma vida sem pobreza, sem precisar racionar a pouca comida que tinha dinheiro
para comprar – uma realidade bastante parecida com a dos distritos devastados
na guerra. A diferença era que Snow ainda vivia em uma mansão suntuosa e não
era sujeito a ter seu nome sorteado como tributo para os jogos.
Pelo contrário, por se destacar nas atividades
escolares, Snow ganha um importante papel de mentor de um dos tributos da 10.ª
edição dos jogos e, assim, tem o primeiro contato com a sensação de poder – e
com tudo de bom e ruim que a responsabilidade carrega junto de si.
A história de Coriolanus traz à tona, mais uma
vez, o questionamento de quem é o verdadeiro inimigo em uma situação de guerra
e caos. Em vários momentos do livro, é difícil acreditar que aquele jovem se
tornaria mais tarde o cruel presidente Snow. Não que o adolescente fosse
ingênuo e puro – essas qualidades lhe foram arrancadas com as perdas pessoais
sofridas durante a guerra e com as consequências que ainda o assombravam uma
década depois de seu fim – mas é evidente o dilema interno vivido por ele entre
permitir se abalar pelos acontecimentos que o cercam ou manter a postura e
mostrar ser a pessoa forte e calculista que esperam que ele seja.
Essa dualidade ganha força quando Coriolanus
conhece o tributo designado a ele, a pessoa que – caso vença os jogos – pode
dar a ele a chance de ir para a universidade e mudar sua vida. Pela primeira
vez, o destino de Snow fica nas mãos de uma garota do Distrito 12 – mesmo local
de onde, mais de 60 anos depois, surgiria Katniss Everdeen.
A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes é mais do
que a história da origem do presidente Snow. É sobre fome – não só de alimentos
para sobrevivência, mas de poder. É sobre entender qual é o seu papel na
manutenção da ordem e da paz, mesmo que esta segunda não seja uma realidade
para todos.
Mais uma vez, Suzanne Collins usa sua habilidade
de escrita e de criação de personagens complexos para trazer à superfície questões
sociais que cercam toda a humanidade e, com isso, faz com que pessoas do mundo
inteiro se conectem com as suas histórias, mesmo que sejam situadas em um
universo distópico. Em tempos tão difíceis, a realidade de Panem não parece tão
distante assim.
O livro também ganhará uma versão nos cinemas,
que contará com Collins como produtora executiva e com o mesmo diretor dos três
últimos filmes da saga, Francis Lawrence. Por conta da pandemia do novo
coronavírus, o processo de pré-produção foi suspenso. Ainda não há data
prevista para lançamento do filme.
O Estadão conversou com David Levithan, editor
de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes e escritor de livros como Todo Dia e
Will & Will, em parceria com John Green, sobre o novo capítulo da saga.
Leia a entrevista a seguir:
Os fãs de Jogos Vorazes foram surpreendidos pela sinopse de A Cantiga dos
Pássaros e das Serpentes. Muitos deles esperavam uma história focada em outros
personagens, como o Haymitch, por exemplo. Por ter o Snow como personagem
central, acredita que os leitores vão compreender melhor as decisões que ele
tomou nos livros da trilogia?
Eu acho que a Suzanne (Collins) é interessada
pela forma como o poder funciona. E qual é a melhor maneira de fazer isso do
que olhar para alguém que nós sabemos que terá um grande poder no futuro?
Quando Shakespeare quis retratar as condições humanas, ele, por diversas vezes,
recorreu a histórias de reis e rainhas, líderes e guerreiros. É uma forma de
mostrar uma versão ousada das escolhas que todos nós fazemos. Ler esse livro
certamente faz você entender o Presidente Snow da trilogia um pouco mais, mas
também acho que dá a você um novo ângulo para enxergar nossos próprios líderes
e a nós mesmos.
Estamos vivendo um período de caos ao redor do mundo. Novos conflitos entre as
Coreias e entre Índia e China, por exemplo.
É certo que não poderiam ter previsto esse cenário quando escolheram a data de
publicação do livro, mas o que acha sobre esse timing? A história de Jogos
Vorazes é mais atual que nunca?
A verdade é que os Jogos Vorazes são atemporais.
A natureza do bem e do mal, daqueles que usam o poder para o bem comum versus
aqueles que o usam para o bem próprio – essas serão questões de natureza humana
e da sociedade que são comuns a qualquer época. A gente apenas percebe esses
pontos com mais clareza em tempos instáveis. Sendo esse um momento particular
de instabilidade, faz sentido para nós sentir esses temas de uma maneira mais
forte. Mas essa é a nossa percepção. Esses conflitos e o cabo de guerra entre cultura
e caos são sempre presentes.
Você editou todos os livros da saga e foi um dos primeiros a ler o manuscrito
do primeiro volume. Esperava esse fenômeno?
Nós sabíamos que os livros mereciam ter esse
sucesso, mas parecia mais um sonho do que uma meta real. O que nos tocou na
primeira vez que lemos o manuscrito acabou tocando milhões de outros leitores
profundamente e muitas pessoas trabalharam bastante, tanto nos bastidores dos
livros quanto dos filmes, para nos trazer até aqui. Mas não teríamos alcançado
tudo isso se não tivéssemos uma história em que acreditássemos tanto.
O que você sentiu quando leu o novo livro? O que os fãs podem esperar?
Eu fiquei surpreso! Nós, editores, não vimos os
rascunhos da Suzanne. Tudo o que sabíamos era quem seria o protagonista e os
ângulos filosóficos que ela queria explorar na história. Quando Kate, a outra
editora, e eu tivemos acesso à história, lemos tudo ansiosamente. E logo em
seguida ligamos um para o outro e conversamos sobre o livro por horas! Depois,
tivemos de esperar pacientemente para o resto do mundo ler também e foi muito
difícil não falar nada sobre o livro para as nossas famílias e amigos. É o tipo
de livro que você morre de vontade de discutir assim que termina a leitura.
A CANTIGA DOS…
Autora: Suzanne Collins
Trad.: Regiane Winarski
Editora: Rocco (490 págs., R$ 59,90)