26 de Abril de 2024

Dólar

Euro

Cultura

Jornal Primeira Página > Notícias > Cultura > García Márquez, o Nobel que apagou as fronteiras entre magia e realidade

García Márquez, o Nobel que apagou as fronteiras entre magia e realidade

18/04/2014 14h01 - Atualizado há 10 anos Publicado por: Redação
García Márquez, o Nobel que apagou as fronteiras entre magia e realidade

Apagando com sua pena a fronteira entre o mágico e o real, o colombiano Gabriel García Márquez revolucionou as letras com histórias de vida, de morte e de mais além, que o converteram no escritor mais famoso e querido da América Latina.

 

O autor de “Cem Anos de Solidão” morreu nesta quinta-feira aos 87 anos, vencido por um câncer, em sua casa na Cidade do México, onde viveu a metade de sua vida. Sua morte encerra um dos capítulos mais ricos da literatura latino-americana.

Inspirado pelas histórias que, quando criança, escutou seus avós contarem, García Márquez criou o universo paralelo de Macondo e o povoou com personagens alucinantes, como mulheres que levitavam, homens que voltam da morte e casais que têm bebês com rabos de porco.

O escritor de sorriso fácil, bigode espesso e cabelo enrolado foi o rosto do boom da literatura latino-americana da década de 1960. A estatura universal de seu estilo, o realismo mágico, foi reconhecida em 1982 com o Nobel de Literatura.

“Sou simplesmente um observador da nossa realidade”, disse à TV espanhola TVE depois de receber o prêmio.

“Tenho uma sensibilidade especial para este mundo em que nasci, e é com essa sensibilidade que trabalho”, explicou. “Nego-me a sair dela. Não tenho por que sair dela. Dei-me muito bem com ela”.

E essa mesma sensibilidade o converteu em um homem político. Um de seus melhores amigos era o líder cubano Fidel Castro, e seu filho mais velho foi batizado por Camilo Torres, um padre espanhol que fundou o grupo guerrilheiro colombiano Exército Nacional de Liberação (ELN).

Metódico e obsessivo, García Márquez contou ao jornalista norte-americano Jon Lee Anderson que se levantava todos os dias às cinco da manhã. Lia um livro durante algumas horas, folheava os jornais, respondia e-mails e – chovesse ou fizesse sol – dedicava quatro horas diárias a escrever.

Sobre sua mesa de trabalho sua esposa Mercedes Barcha punha todas as manhãs uma rosa amarela, primeiro junto à máquina de escrever e depois a um computador Macintosh.

Além de “Cem Anos de Solidão”, García Márquez deixou outros clássicos da literatura latino-americana como “Ninguém Escreve ao Coronel”, “O Outono do Patriarca”, “O Enterro do Diabo”, “Crônica de uma Morte Anunciada”, “Notícia de um Sequestro” e “Memória de Minhas Putas Tristes”.

 

NOBEL SEM FRAQUE

García Márquez era um homem graciosamente irreverente e jamais ocultou suas ideias de esquerda.

Em dezembro de 1982, se apresentou para receber o Nobel das mãos do rei da Suécia vestido de liquilique, um traje tradicional de linho colombiano, em lugar do fraque de praxe.

Em seu discurso não só falou do realismo mágico na América Latina, mas também da desigualdade e das violações dos direitos humanos cometidas pelas ditaduras militares da época.

“Atrevo-me a pensar que é esta realidade descomunal, e não só sua expressão literária, a que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras”, disse. “Uma realidade que não é a do papel, mas a que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de desdita e de beleza”.

Embora sua obra tenha profundas raízes na Colômbia, García Márquez viveu durante décadas no México, onde se asilou em 1981 depois de ser acusado de financiar o grupo guerrilheiro M-19.

Ele gostava de se definir, um pouco de brincadeira e um pouco a sério, como um “grande conspirador”. No final da década de 1990 ajudou a organizar negociações de paz entre o governo da Colômbia e o ELN em Havana, que não chegaram a lugar nenhum. Também participou, nos bastidores, de negociações para terminar a guerra civil em El Salvador e na Nicarágua.

 

CEM ANOS

“Gabo”, como o chamavam seus amigos e admiradores, nasceu em 6 de março de 1927 em Aracataca, um povoadozinho tórrido do Caribe colombiano.

Mais velho dos 11 filhos de um telegrafista, García Márquez estudou Direito, mas abandonou a universidade para se dedicar à literatura e ao jornalismo. No final da década de 1950 mal sobrevivia como correspondente de um jornal colombiano em Paris.

Sua literatura nasceu das histórias fantásticas que escutou da boca de seus avós maternos, ela uma matriarca com dotes de adivinhadora e ele um veterano da Guerra dos Mil Dias, como o protagonista de “Ninguém Escreve ao Coronel”.

Para poder escrever “Cem Anos de Solidão” em 1965, García Márquez teve que empenhar seu carro e pedir dinheiro emprestado aos amigos. Quando terminou, 18 meses depois, não tinha dinheiro sequer para enviar o manuscrito a seu editor em Buenos Aires.

O romance conta a história das sete gerações da família Buendía durante a fundação, o desenvolvimento e a decadência de Macondo, um povoadozinho rodeado de plantações de banana igual à sua Aracataca natal.

Mesmo depois de vender 30 milhões de exemplares, García Márquez costumava rir de sua fama.

“O pior que pode acontecer a um homem que não tem vocação para o sucesso literário, ou em um continente que não está acostumado a ter escritores de êxito, é publicar um romance que venda como salsichas”, disse em uma ocasião.

“Esse é o meu caso”, declarou. “Recusei-me a me converter em um espetáculo. Detesto a televisão, os festivais literários, as conferências e a vida intelectual”.

 

AMIGO DE FIDEL

García Márquez foi amigo de escritores como Mario Vargas Llosa, Álvaro Mutis, Carlos Fuentes, Julio Cortázar e Pablo Neruda, e também do diretor espanhol Luis Buñuel.

Mas nenhuma amizade o marcou tanto como a que cultivou durante meio século com Fidel Castro. Eram tão próximos que, dizem, García Márquez mandava os rascunhos de seus romances a Castro para que os lesse antes de publicá-los.

Quando ganhou o Prêmio Nobel, o líder cubano lhe mandou 1.500 garrafas de rum a Estocolmo. Até alguns anos atrás, Gabo tinha uma casa na Marina Hemingway, no oeste de Havana.

E sua amizade lhe custou críticas de colegas desencantados pela censura aos intelectuais cubanos. O peruano Vargas Llosa, um companheiro da geração do boom que também ganhou o Nobel de Literatura, chegou a descrevê-lo como um “cortesão de Castro”.

“Sou amigo de Fidel e não sou inimigo da revolução. Isso é tudo”, afirmou García Márquez em uma ocasião, segundo relata o livro “Gabo e Fidel”.

Sua saúde começou a enfraquecer em 1999, quando foi tratado de um câncer linfático. Em 2012 seus familiares explicaram que ele tinha problemas de memória e havia deixado de escrever.

García Márquez foi hospitalizado no final de março por culpa de uma infecção pulmonar. E quando lhe deram alta na semana passada, os médicos advertiram que sua saúde era delicada.

Casado há cinco décadas e meia com Mercedes Barcha, García Márquez teve dois filhos. O mais velho, Rodrigo, dirigiu vários filmes em Hollywood, como “Nove Vidas” e “Albert Nobbs”.

Nos últimos anos voltava de vez em quando à Colômbia, embora para se refugiar em sua residência na cidade colonial de Cartagena das Índias.

Gabo apareceu em público pela última vez na porta de sua casa da Cidade do México em 6 de março, dia de seu aniversário de 87 anos. Não disse nem uma palavra, apenas presenteou com um sorriso cansado os jornalistas que lhe cantaram os parabéns. Na lapela do terno trazia uma rosa amarela.

 

 

Recomendamos para você

Comentários

Assinar
Notificar de
guest
0 Comentários
Comentários em linha
Exibir todos os comentários
0
Queremos sua opinião! Deixe um comentário.x