Reginaldo Faria avalia carreira na volta à TV em ‘Totalmente Demais’
Pode ser que boa parte do
público nem se dê conta, mas quem assiste à novela Totalmente Demais, na faixa
das 7, tem sido brindado, dia após dia, com citações a clássicos do cinema. Uma
explicação muito simples é que os autores, Rosane Svartman e Paulo Halm, são do
ramo. Ela é diretora, e das boas, ele, roteirista e tarimbado. No outro dia,
como preparativo para a próxima etapa do concurso Garota Totalmente Demais,
Arthur/Fábio Assunção foi ensinar um tal beijo técnico a Eliza/Marina Ruy
Barbosa. Mostrou-lhe cenas de beijos clássicos, de Charles Chaplin a Julia
Roberts, passando por Clark Gable e Vivien Leigh, Greta Garbo e Mervyn Douglas,
Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, um momento de antologia inspirado no final de
Cinema Paradiso, que venceu o Oscar de filme estrangeiro, além de ter sido um
dos longas mais requisitados pelo público nas pré-vendas para o Cine Drive-in
Belas Artes no Memorial da América Latina.
Arthur vive recitando poesias. E se refere a Eliza como ‘sua’
criação – Pigmalião e Galateia. Arthur tem a mãe, Stelinha/Glória Menezes, uma
folgada que está ensinando Eliza a se comportar em sociedade – não são
exatamente bons conselhos. As aulas são de etiqueta ou de hipocrisia social?
Stelinha vive falando no marido, Maurice, que deixou na Europa. A surpresa do
capítulo da última sexta-feira (26) foi que Maurice está de volta ao Brasil.
Faz sua entrada triunfal na trama, o que é um ótimo pretexto para se conversar
com Reginaldo Faria, que é quem faz o papel.
Ele iniciou a carreira de ator nos anos 1950, dirigido pelo
irmão Roberto Farias em No Mundo da Lua e por Watson Macedo em Aguenta o Rojão.
Em 1960, Roberto iniciou com ele, em Cidade Ameaçada, uma trilogia informal que
prosseguiu com O Assalto ao Trem Pagador e Selva Trágica, todos clássicos do
cinema brasileiro. Nos anos 1970, na verdade, em 1969, o próprio Reginaldo
tornou-se diretor com Os Paqueras. Na TV, fez novelas a perder de vista, desde
Ilusões Perdidas, de 1965, a Espelho da Vida, exibida entre 2018 e 2019.
Quem viu Totalmente Demais em 2015 já sabe, mas o que Maurice
vem fazer na trama? Stelinha refere-se ao marido como playboy, perdulário,
mulherengo. Ele é? “O personagem, mais para bon vivant do que para
playboy, resistiu ao máximo a voltar para a vida regrada. Entretanto, a idade
pesa e o retorno ao lar deveria servir como uma boa dosagem de conforto, tendo,
evidentemente, Stelinha como seu porto seguro.” Reginaldo responde às
perguntas por e-mail. Está isolado em casa. Que lembrança guarda de Maurice?
“Nunca tive experiência como bon vivant. Como ator, imagino; como leitor
ou espectador, tiro minhas conclusões; como artista, coloco em prática. E,
então, carrego em mim o limite da aceitação, me divertindo ou não.”
Ele está vendo a novela? “Sou muito crítico comigo
mesmo. Irrito-me pelas coisas mais simples que fiz. Então, para não me ferir e
não ferir os que amaram fazer, não vejo.”
Insistindo, o que Maurice vem fazer? “O retorno leva pai
e filho a boas reflexões.” Reginaldo esclarece: “Não comecei em
cinema como ator. Comecei como assistente de câmera, depois assistente de
direção. Seria mais ou menos natural entrar para a direção. Não fui pioneiro
nas comédias, outros já haviam feito. Os Paqueras, a primeira que fiz,
considerada picante, era ingênua comparada aos que distorciam o que havíamos
feito.
Meus personagens, que faziam amor vestidos, morreriam de
vergonha se vissem uma única cena naquele festival adoidado de pelados e
peladas.” E ele reflete – “Meu Deus, não fui perfeito em minha
criação! (Estou rindo), mas Os Paqueras foi sucesso de bilheteria, lotando um
cinema de quatro mil lugares, o Imperador Foi também exibido no Bruni Meyer por
seis meses sem sair de cartaz; quatro meses no Cinema Caruso de
Copacabana.” São todas antigas salas de rua do Rio.
Ao sucesso inicial de Os Paqueras seguiram-se Pra Quem Fica
Tchau, Os Machões, Quem Tem Medo de Lobisomem? O Flagrante. Reginaldo dialogava
com o grande público por meio do humor. E aí, em 1977, ele deu uma guinada na
carreira de diretor. Fez Barra Pesada. O filme é contemporâneo, em tempo e
tema, de Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia, que ele também fez, como ator,
sob a direção de Hector Babenco. Só para lembrar, Babenco venceu o prêmio do
público na primeira Mostra de São Paulo.
Barra Pesada baseia-se em Querô, de Plínio Marcos. O personagem
do jovem marginal ganharia destaque internacional com Pixote, outro Babenco,
que já dialogava com o filme de Reginaldo. “Barra Pesada e Lúcio Flávio
foram inscritos simultaneamente no Festival de Cinema de Gramado. Eu, como
protagonista de um filme que não era meu, concorria com Stepan, que era
protagonista de um filme que era meu. Aquela ambivalência mexia. O amor estava
meio que dividido entre os dois filmes e não sabia que tipo de dor ou alegria
aquele festival ia me reservar. Ao final, Stepan ganhou o prêmio da crítica
como melhor ator e eu ganhei o prêmio do festival como melhor ator. Plínio
Marcos não gostou do título Barra Pesada, preferia Querô. Mas gostou do filme.
A trilha sonora feita por Edu Lobo que foi impecável. Ele (o compositor) também
foi premiado.”
Embora a maioria da crítica considere O Assalto ao Trem
Pagador a obra-prima da dupla Roberto/Reginaldo, a preferência do repórter vai
para Selva Trágica, de 1964. Exatamente 56 anos depois, a pergunta que não quer
calar. Aquele ambiente violento de trabalho escravo na fronteira paraguaia foi
muito pesado para reconstituir na tela? “Vou citar um pequeno detalhe: Um
capataz cedido para o filme ditava ordens aos mestiços escolhidos para
figurantes. O ritmo acelerado das filmagens não combinava com o deles; as cenas
retratavam a escravidão dos ervateiros que tinham como obrigação carregar sacos
de erva-mate pesando acima de 200 quilos. Roberto sugeriu que carregassem sacos
cenográficos, sem o peso real, apenas com enchimento leve, para não perder o
impacto dramático. O capataz não gostou e disse que seus homens não eram
frouxos e que iriam carregar o peso real. Entretanto, as cenas se repetiam, ora
por questões fotográficas, ora por enquadramento ou pelo surgimento de nuvens
enormes impedindo a luz solar. O capataz novamente reagiu: “Meus homens
não são burros de carga”. Roberto sugeriu novamente que levassem os sacos
cenográficos. O homem repetiu dizendo que os homens dele não eram frouxos. O
impasse resultou em clima pesado e até ameaça de morte. Dormíamos armados, com
revólveres embaixo dos travesseiros.”
São mais de 60 anos de uma carreira extraordinária, que teve
grandes momentos – Reginaldo Faria está com 83 anos. Quando jovem ninguém pensa
nisso, mas agora – como ele revê sua trajetória? “Fisicamente posso não
dar conta, mas mentalmente estou inteiro. Repetiria tudo outra vez, com muita
alegria.” Como vive o isolamento social na pandemia? “Antes não me
concentrava nas coisas por ser levado às coisas seguintes. Agora me concentro e
faço tudo por inteiro, tenho todo o tempo do mundo. Não me ausento dos fatos,
rechaço e me decepciono com os da nossa espécie que, nesta época tão triste,
tiram proveitos inescrupulosos. Chego a pensar que nem o desprezo por eles é
suficiente.” O Brasil? “Um gigante que não deveria aceitar a
desigualdade entre os homens, que deveria combater os que pensam conquistar
através do mando.”
Algum novo plano de filme? “Plano nenhum. Vejo na
Netflix infindáveis minisséries de diversas nações e pouca coisa produzida ou
apoiada em nosso país. Antes lutávamos pela igualdade nas salas de exibições de
filmes; na década de 70 conquistamos metade do nosso mercado, concorrendo com
os estrangeiros. Veio para cá um tal de Jack Valenti, da Motion Pictures, e
travou nosso sonho; Collor de Mello aniquilou a Embrafilme e a classe se
esfacelou. Hoje, a juventude vive dos filmes que faz (enquanto filma) e os
exibidores só aceitam os que se enquadram nos perfis de seus interesses. Os que
deviam nos apoiar estão em Brasília se engalfinhando em busca de poder
político.”
De volta a Maurice, qual será o legado dele? “Bon vivant
só queria levar adiante a própria joie de vivre, mas, ao retornar, entende que
na nova convivência, valores devem ser reconceituados, tendo Stelinha como seu
porto seguro.” Para finalizar, porque Reginaldo é Faria e Roberto, Farias?
“Foi erro de registro no cartório.”