Adiamento inédito gera impasses para realização de Jogos em 2021
Especialistas falam das dificuldades esportivas e burocráticas
Antes
do adiamento dos Jogos, o Brasil tinha 178 atletas garantidos nas Olimpíadas em
25 modalidades. Após a mudança da data de realização do evento, as
incertezas tomaram conta desse processo. Bárbara Schausteck de Almeida,
doutora em educação física pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica como
a situação afeta os esportistas. “É um desafio para todos.
Alguns atletas têm sua carreira toda programada para ter seu pico de
desempenho em uma edição olímpica. Nem sempre é possível prolongar esse
desempenho por mais tempo, mesmo que um ano pareça pouco”, disse. Ela
considera importante que os responsáveis definam o quanto antes o novo período
de realização dos Jogos. “Não apenas pelo clima em si, mas,
principalmente, pelo tempo de preparação. É diferente planejar um treinamento
para que o auge físico aconteça em seis, nove ou 12 meses. Sem dúvida, o COI
[Comitê Olímpico Internacional] vai sofrer pressão de todos os lados para que
essa decisão aconteça o mais rápido possível.”
O Comitê Olímpico mudou muito desde 1984. A
partir daquela edição, a questão do “amadorismo” começou a ser deixada de lado.
Até ser abandonada em quase todas as modalidades. A professora também falou
sobre isso. “Esse adiamento é inédito. Muito significativo na preparação
esportiva. Imagino que todas as federações estejam avaliando os impactos em
suas modalidades e proponham as mudanças que entendam ser necessárias. O nível
atual de profissionalismo é tão grande que não permite uma preparação de apenas
um ano. Os atletas, equipes e federações se planejam com quatro, oito anos de
antecedência”.
Outra polêmica é o apelo que já vem crescendo de
atletas do futebol para que a idade limite do torneio olímpico seja alterada de
23 para 24 anos. “É preciso bom senso para não prejudicar os atletas.
Retirar os jogadores por questão de idade nesse momento traria um prejuízo
grande às seleções. Isso, é claro, no contexto desse adiamento
dos Jogos em um ano.”
No entanto, tais definições não são aguardadas
apenas pelo mundo olímpico nacional. Elas também são esperadas pelos quase 230
atletas já classificados em 14 modalidades para as Paralimpíadas de Tóquio
e vários outros que ainda brigam por vagas no principal evento esportivo
mundial. O grupo espera, principalmente, pela definição da nova data do evento.
O diretor técnico do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), Alberto Martins,
também se posicionou a respeito. “Não acredito que as Paralimpíadas
sejam realizadas antes de maio. No inverno, que é bastante rígido,
dificilmente isso deve ocorrer. Mas é claro que a expectativa de todos se
manterá grande”.
Martins lembra também que o esporte paralímpico
tem um diferencial importantíssimo: a classificação funcional (índices que
dividem os atletas conforme as suas deficiências em cada uma das modalidades).
“O Comitê Paralímpico Internacional [IPC] já definiu que lá em Tóquio não
teremos bancas classificatórias. Isso quer dizer que todos os atletas devem
chegar lá com essa questão já definida. Nós temos alguns atletas ‘em situação
de revisão de classe’, como a velocista Verônica Hipólito. E tem também a
questão dos ‘atletas new‘ (atletas
que chegaram há pouco tempo ao paradesporto e ainda não passaram por nenhuma
classificação). Um dos principais casos aqui no Brasil é do nadador paulista
Gabriel Bandeira. As classificações e reclassificações acontecem em competições
chanceladas pelo IPC ao redor do mundo e muitas delas foram canceladas pela
pandemia da covid-19. Essa é uma preocupação que a gente tem, sem dúvida”,
afirma Martins.
Segundo o diretor técnico, o CPB aguarda a
definição do novo cronograma do IPC para retomar os eventos no CT Paralímpico
da capital paulista, local que está fechado desde o ínicio da crise.
“Tivemos que adiar vários torneios, como o Open de Natação e Grand Prix de
Atletismo. Mas, passando esses problemas, vamos retomá-los. E as bancas devem
estar presentes aqui no Brasil para fazer essas reclassificações”,
esclarece.
Na parte esportiva, o dirigente ressalta também
que o comitê estará ao lado dos atletas classificados e daqueles que ainda
buscam índices. “Já estabelecemos marcas muito fortes para definir os
classificados, principalmente no atletismo e na natação. Por isso, não teremos
mudanças. Praticamente todos obtiveram as vagas em mundiais muito fortes. Mas
temos vários atletas nessas e em outras modalidades que ainda estão em busca de
vagas. Eles têm um certo alento de saber que não estarão se expondo, podem
ficar um pouco mais tranquilos em relação à preparação. Mas a definição do novo
cronograma do IPC é fundamental. E estamos esperando essa informação.”
Alberto Martins adiantou que na próxima semana o
CPB vai lançar um material específico para orientar os atletas neste período de
isolamento. “Vai ser um planejamento de acompanhamento dos atletas em
casa. Queremos colocar a nossa equipe multidisciplinar perto deles para
minimizar as perdas dessa parada nos aspectos fisiológicos, técnicos e,
principalmente, psicológicos.”
Prejuízos
Estima-se que o prejuízo do Japão com o adiamento de Tóquio 2020 possa
chegar a R$ 13 bilhões. Em entrevista ao jornal japonês Nikkei,
o diretor executivo do Comitê Local, Toshiro Muto afirmou: “Não temos como
precisar o valor. E quem vai pagar isso? Não preciso dizer que não serão
discussões fáceis e não sabemos quanto tempo vão durar”. Em
teleconferência com jornalistas do mundo todo nesta quarta-feira (25), o
presidente do COI, Thomas Bach, afirmou que o primeiro-ministro japonês, Shinzo
Abe, se comprometeu a ajudar: “Todos vão ser impactados, não só os
atletas. Temos que fazer desses Jogos um símbolo de união”, defendeu o
dirigente do COI.
Anderson Gurgel, professor de marketing esportivo
da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo, fez uma análise do
impacto financeiro da decisão tomada pelo COI e pelo governo
japonês. “Esse anúncio traz alívio ao mundo esportivo, em função da
pandemia da covid-19, mas também traz apreensão e preocupações. Essa
preocupação se sustenta no argumento anterior do COI de segurar a possibilidade
de os Jogos ocorrerem este ano, pedindo aproximadamente um mês para confirmar o
adiamento, por conta da complexidade de negociações e organização do evento.
Mas, após cederem e aceitarem adiar as competições, eles não
definiram em que mês de 2021 ocorrerá as Olimpíadas.”
A dificuldade se deve ao tamanho do evento, que
conta com mais de 30 federações representando as modalidades participantes,
sendo necessário para o Comitê Organizador conversar com todas, em busca de
acertos completos. Sem falar da logística do país-sede. Uma das preocupações é
a Vila Olímpica. Muitos apartamentos que iriam receber os atletas já
estavam sendo negociados para serem entregues depois dos Jogos. Cerca de 25%
das 5.632 acomodações já teriam sido vendidas. Os impactos financeiros também
afetam acordos comerciais com patrocinadores e da transmissão do evento.
“Para a NBC (canal de televisão americano), tem-se um vácuo no verão de
programação de 2020, visto que os esportes dos Estados Unidos estarão ‘de
férias’, e agora o grande evento do ano não mais acontecerá”,
argumenta Gurgel. Porém, o professor pondera que, apesar de a notícia ser
desagradável e incômoda, a decisão de adiar era a mais correta possível.
“Os Jogos em 2021, em um contexto de um mundo mais pacífico, com a
pandemia resolvida, devem ser realmente uma grande festa, um momento de
confraternização, com atletas e espectadores no auge da emoção, que é o que
evento sempre propõe e executa.”
Questões simbólicas
Pela primeira vez na história das Olimpíadas, o evento foi adiado, e o
ineditismo da decisão também pode trazer consequências, considera a professora
Katia Rúbio, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
“É a quebra de um ritual sob o qual nasceram os Jogos Olímpicos, que é o
respeito ao calendário quadrienal conforme acontecia na antiguidade. O único
elemento que associa os Jogos da Era Moderna aos acontecidos na antiguidade, lá
na Grécia, é essa construção simbólica sobre uma celebração que envolvia
práticas atléticas, que tinha como finalidade honrar deuses. Nos tempos atuais,
essa questão divina deixa de existir. Mas ela permanece com ritos simbólicos
que fazem com que essa competição se diferencie de todas as demais competições
que estão postas para a nossa sociedade. Diferentemente de uma Copa do Mundo,
que também atrai um grande número de telespectadores, ou uma final de um
Superbowl, o que nós temos nos Jogos Olímpicos é uma tradição mítica que, ao
mudar a data original dos Jogos, acaba se perdendo. Esse esvaziamento
simbólico, com essa transferência, coloca em risco a queda de importância dos
Jogos Olímpicos do ponto de vista do imaginário popular. Podendo transformá-los
em apenas mais uma competição esportiva.”
A pesquisadora destaca também a importância que
eventuais mudanças na Carta Olímpica, que prevê os Jogos de quatro em
quatro anos obrigatoriamente, podem acarretar ao movimento olímpico mundial:
“Ao longo do século 20, a Carta Olímpica sofreu pequenas alterações. Na
verdade, foram muito mais inclusões do que modificações. É um dos documentos
mais longevos do século 20. Para que os Jogos aconteçam em 2021, a Carta
Olímpica terá que ser alterada. E essa é uma questão que vai determinar
muito dos rumos do que vai ser do olimpismo mundial. Se ela for modificada,
definitivamente, será o fim do movimento. Agora, se houver alguma outra
modificação, e eu acho que os dirigentes olímpicos vão ter de ser muito
criativos para lidar com isso, ela vai determinar o curso do movimento olímpico
no futuro.”
Sobre a ideia cogitada pelo COI de realizar os
Jogos Olímpicos no ano que vem, mantendo a marca de Tóquio 2020, a professora é
radicalmente contrária. “Fica claro que não serão Jogos Olímpicos. Será um
Campeonato Mundial de todas as modalidades. Eles podem até usar os anéis
olímpicos. Mas não serão Jogos Olímpicos”, disse.
Já Alberto Murray, advogado e ex-presidente da
Comissão de Ética do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) avalia a questão de outra
forma. “A ideia de manter a marca Tóquio 2020, mesmo com os Jogos sendo
realizados no próximo ano, pode ser uma saída honrosa em virtude da situação
toda que a humanidade está vivendo. Mas seria preciso explicar que os Jogos
tiveram um caráter de celebração pelo fim de uma guerra contra um inimigo
invisível, mas universal.”